domingo, 19 de junho de 2016

A Animagogia e o humanismo católico progressista de Ernani Maria Fiori: alguns diálogos



Adilson Marques - asamar_sc@hotmail.com

A Animagogia é uma proposta de educação espiritualista nascida a partir da tese de doutorado defendida na USP chamada "Nossas lembranças mais pessoais podem vir morar aqui". Ela visa despertar os atributos do espírito na vida cotidiana (Amor, felicidade, equanimidade etc.) e concebe que a transcendência se alcança através do mergulho na vida, na imanência. E ela se fundamenta em autores que também são caros para o pensamento de Fiori, com os filósofos e judeus Martin Buber e Emmanuel Lévinas, o jesuíta  Teilhard de Chardin e o carismático e emblemático educador Paulo Freire.
Com base em algumas passagens do livro Educação e Política (textos escolhidos volume 2), que apresenta a transcrição de aulas e conferência de Ernani Maria Fiori, é possível ter acesso as bases de seu pensamento ou de sua cosmovisão que é identificada pelos organizadores do livro, Otília Beatriz Fiori Arantes e Paulo Eduardo Arantes, como sendo um "humanismo católico progressista", daí adotarmos essa nomenclatura para identificar seu pensamento.
Nas páginas 11 e 12, na apresentação do livro, uma citação dos organizadores ao apresentar a questão da ideologia, já evidencia que ele não foi marxista: "por que muitos de nós, na recente 'guerra de legalidade', chegamos atrasados em relação aos marxistas, aos militantes, que imediatamente tomaram posição? qual foi a superioridade tática e técnica deles em relação à nós, que também pretendíamos defender a legalidade, mas numa outra perspectiva, em nome de outros valores?"  Na página 142, essa frase aparecerá contextualizada na discussão sobre a  ideologia, na qual expõe um outro ponto de vista, definindo a ideologia como ideia-força, como veremos adiante.
E na página 19, no texto intitulado aspectos da reforma universitária, que apresenta a transcrição de uma palestra realizada em 1962, antes de abordar seu conceito de cultura e de universidade, Fiori vai expor com mais detalhe sua cosmovisão. É uma passagem curta, mas que deixa patente o seu referencial . Ele afirma que não é "essencialista" e nem é "existencialista". Em suas palavras, afirma: "em se tratando de homem, não sou nem essencialista, pois não ponho, de maneira absoluta, a essência antes da existência, nem existencialista, ao modo de Sartre, por não admitir que a existência preceda a essência." (p. 19)
Porém, mesmo admitindo que não é essencialista, pois teria que aceitar que haveria um princípio que permaneceria sempre igual a si mesmo, como acontece, em tese, com os adeptos do hinduísmo, o  que não é o caso de Fiori, podemos compreender que sua cosmovisão, como ele mesmo afirma na página 23, sofre influência de dois pensadores espiritualistas evolucionistas:  Teilhard de Chardin e Henry Bergson.  A partir desse esclarecimento, fica mais fácil compreender os fundamentos do humanismo católico progressista de Fiori, que admite a presença de uma essência que se "conquista" através da existência, através da criação da história e da cultura. E, no campo político, deixa evidente na transcrição de sua palestra, a sua opção por um socialismo democrático afirmando que "a socialização deve ser integração personalizante e não despersonalizante, não a socialização que sufoca, abafa e faz morrer a personalidade na pessoa humana, mas, ao contrário, que, pelo adensamento da comunhão humana, propicia as verdadeiras condições de livre afirmação do espírito." (p. 34)
E a questão do espírito é fundamental em sua cosmovisão, tanto que a "libertação" que é um ideologema fundamental no pensamento de Fiori acontece em 3 dimensões que podem ser alienantes: a libertação econômica, a social e a religiosa.
Apesar de não fazer referências a Lévinas, mas a um outro pensador judeu, Martin Buber, podemos encontrar semelhança entre a noção de transcendentalismo proposta por ele e a de Lévinas, conforme exposta em Totalidade e Infinito. Ou seja, ambos não negam a imanência. Fiori afirma: "o Transcendente, embora essencialmente distinto do imanente está presente na imanência das coisas e da História.  E o religioso autêntico não é o que se aliena num transcendente que desconhece o mundo e a História, mas o que, na história do mundo, faz encarnação concreta dos grandes valores que luzem além das fronteiras de sua finitude." (p. 34)
Essa concepção de transcendentalismo que, como salientamos, se aproxima da realizada por Lévinas, para quem a transcendência se processa quando nos abrimos para o mundo, para o outro, faz com que a pedagogia de Fiori seja eminentemente voltada para a "libertação", para a práxis histórica, porém, não em uma perspectiva marxista, uma vez que Fiori propõe uma outra maneira de se pensar a constituição da consciência humana.
Retomando Chardin, Fiori tomara emprestado o conceito de noosfera, ou seja, a "superfície espiritual" que envolve a biosfera e, de forma otimista, aponta que ela possui "amor na origem e na destinação da história" (p. 104). Porém, o homem (encarnado) nunca chegará a realizar-se plenamente.  Pelo menos no que se refere à temporalidade, ou seja, à história.  Outra coisa é a realização espiritual, que na ótica cristã de Fiori, o levará a pensar a política como práxis submissa aos valores morais e espirituais. O contrário disso seria o "politicismo"(p. 139).
O fazer político proposto por Fiori estaria para além das questões pensadas por  Maquiavel e por Kant, pois, a moral do cristão seria o "bem" e não, necessariamente, o "dever". Este seria uma decorrência do primeiro. E, assim, a integração do cristão na sociedade ou seu compromisso com a história é, também, um "compromisso moral" (p. 142).
Como salientamos, a ideologia assume na perspectiva de Fiori um papel importante e se distingue daquela discutida por Marx. Enquanto para este a ideologia é uma forma alienada de existência e que deve ser superada, para Fiori trata-se de uma ideia-força que interfere no processo histórico para interpretá-lo e transformá-lo. Em outras palavras, a interferência na práxis histórica é feita através da ideologia  (p. 166) e não, necessariamente, da filosofia. Esta seria a responsável por um mergulho interior no próprio mistério do ser (p. 166) ou seja, da "energia criadora",  daquilo que "dá consistência aos seres",  do "espírito".
E a partir dessa distinção entre a ideologia e a filosofia, podemos compreender sua noção de trabalho:  a "expressão de uma consciência espiritual transformadora do mundo" (p. 170).
Após essa apresentação sintética de seu pensamento, apoiado pela leitura da transcrição de suas aulas e palestras, vamos  apresentar 3 questões para um diálogo fratriarcal entre seu pensamento e o que identificamos como Animagogia.
A primeira é em relação a essência. De um ponto de vista mais restrito que pensa o essencialismo como a doutrina que defende que a essência permanece inalterada ou que não se transforma apesar dos "acidentes" da existência, concordamos com Fiori e não identificamos a Animagogia como essencialista. Mas, de um ponto de vista mais amplo, entendendo por essencialismo a doutrina que defende que há uma essência que antecede a existência e que pode, inclusive, reencarnar, então a Animagogia é essencialista e se distingue nesse ponto metafísico da proposta de Fiori. Essa questão, porém, não entra em conflito com a questão da transcendência, da práxis e da libertação, sobretudo, a religiosa (que preferimos tratar como espiritual), pois como salientamos, tanto em seu pensamento como nos pressupostos da Animagogia, a transcendência não se alcança fugindo ou se isolando do mundo, mas, ao contrário, na vivência profunda do mundo, na abertura ao outro, na alteridade.
A segunda será em relação à noção de noosfera. Como Fiori, entendemos ela como a dimensão espiritual e, como afirma, amorosa na origem e na destinação da história. Mas, entre a noosfera e a biosfera identificamos na Animagogia uma outra dimensão intermediária que chamamos de psicosfera, ou formada pelas  energias psíquicas como são as emoções e os pensamentos (ideias). Na psicosfera nascem as criações científicas, religiosas, filosóficas, artísticas, entre outras. Porém, a base arquetípica dessas criações está em  uma dimensão "acima", que chamamos de noosfera. Aqui reside o imaginário, no sentido mais profundo, e que é base das ideologias e das criações mentais humanas que se materializam, através do trabalho e da práxis, na biosfera.  E essa posição nos leva, forçosamente, a ter uma diferente concepção de imaginário também. Enquanto para Fiori este é sinônimo de fantasioso (p. 110), vamos partir da perspectiva de Gilbert Durand, próxima da proposta por Jung, e que resulta, inclusive, nesta diferente proposta de noosfera, exposta acima, e na inserção de uma outra, a psicosfera, ou plano das energias psíquicas que, segundo Jung, não se tinha como quantificar (quantizar), apenas sentir suas intensidades e qualificá-las.
E por fim, a terceira questão que colocamos está na libertação. Além das três pensadas por Fiori (econômica, social e religiosa), inserimos, na Animagogia, a libertação ambiental, ou seja, a necessidade de libertar a natureza e a Terra, de forma geral, da opressão humana, de forma que os animais, as plantas e os elementos naturais deixem de serem pensados como recursos, e passem a ter seus direitos à vida garantidos.
O pensamento de Fiori, fundamental no nascimento da teologia da libertação, é tratado com muito respeito na Animagogia, apesar das diferenças expostas acima, o que não impede um diálogo fratriarcal e também uma união na busca por uma sociedade mais justa, participativa e que vivencie, de fato, uma cultura de paz.

FIORI, Ernani Maria. Textos escolhidos volume 2 (Educação e Política). Porto Alegre: LP&M, 1991.


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